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robindotelhado
sexta-feira, março 12, 2004
 
JOÃOZINHO-LAMBE-SELOS

O Henriquinho de que vos falei há uns tempos tem um irmão, o Joãozinho.
Ao contrário daquele, que exerce com zelo a profissão de lambe botas, este é lambe selos.
Seguindo as pisadas do irmão, resolveu também fazer uso do seu órgão carnudo, alongado, móvel e avermelhado – a língua.

Rapaz orgulhoso e ciente dos seus méritos linguarudos, apresentou-se na estação local dos CTT para prestar provas, pensando que isso era condição bastante para ser admitido.
Não curou informar-se que a oposição andava em cima dos senadores, passe a expressão, a controlar todos os gastos com pessoal, assim impedindo novas contratações, ainda que a prazo.

Assim que se abeirou da multidão que consigo iria concorrer, enrolou a sua longa língua e fez marcha à ré. Eis senão quando se lembrou de um precioso ensinamento do seu irmão Henriquinho, dito em segredo, como era seu hábito: «ao longo da tua vida, se alguma contrariedade encontrares, nunca percas a fé. Recorre aos ensinamentos do evangelho segundo ACF e as portas abrir-se-ão de imediato, sem que tenhas de pedir a Sésamo».

Dando corda aos sapatos, previamente lambidos pelo seu irmão, rumou em direcção ao quiosque que também serve de biblioteca junto aos Paços do concelho. Aí chegado, após demorada triagem do seu pedido, conduzida por trinta e três dos cento e setenta bibliotecários doutores em TAAAQ (Técnicas Altamente Avançadas de Arquivo), conseguiu que lhe trouxessem o Livro desejado, a Bíblia dos desprotegidos. Estou obviamente a falar da 17ª edição do evangelho segundo ACF.

Porque o tempo escasseava, foi directo ao índice e encontrou a secção que procurava: situações de crise, pág. 1139. Rezava assim tal página: «se nenhum dos meus pregões conseguiu resolver o seu problema – já estou habituada a isso – venha falar com a Minha Pessoa e em breve tudo serão águas passadas».

Seis secretárias e três assessores depois e lá estava o Joãozinho defronte do Magnânimo, Ilustre e Clarividente Timoneiro de todos nós. Exposto o problema, logo disse: a solução está à distância de um telefonema.

Ainda este não estava acabado e já a língua do Joãozinho estava a funcionar. Parecia o Rex do AM a beber água, tal era a velocidade com que desempenhava a sua tarefa. Sentado num mocho de perna aberta e calça arregaçada, para que os seus sapatos pudessem ser avistados por quem entrava, colava selos e selos sem parar.

Alegre pela sua ocupação e eternamente agradecido pela nomeação feita pelo timoneiro, quis agradecer tamanha atenção. Lembrou-se então de um desabafo feito pelo seu irmão Henriquinho, sempre em segredo, como é seu hábito: «a congregação dos limpa chaminés tem cada vez menos participação. Já ninguém lá põe os pés. Agora são só meia dúzia. O pai do bacouco mijado e mais dois ou três chavalos sem testa com tacho».

Pensando estar a contribuir para o desenvolvimento de tão importante congregação, arregimentou uma série de pretendentes a limpa-chaminés, tratando de os convencer de que a sua presença era da maior relevância, dada a urgência do debate sobre os assuntos determinantes do concelho. Como rebuçado, acenou-lhes com a certeza de que a imediata inscrição iria permitir a participação na eleição interna que se avizinhava, em que sairia a lista dos próximos candidatos ao senado.

Em surdina, pediu ao bivalve que lhe fornecesse 1068 boletins de inscrição, o mesmo número de interessados que tinha encontrado. Depois de 345 telefonemas efectuados pela concha gastadora, conseguiu o que pretendia.

Nos intervalos das lambidelas, conseguiu preencher todas as fichas em menos de dois dias e, em jeito de surpresa, enviou-as para apreciação superior sem nada dizer a ninguém.

Decorridos três dias, viu o bivalve passar cabisbaixo, de concha descaído, com as duas mãos ao longo das pernas. Perguntou-lhe o se passara e só depois viu que as suas mãos estavam vazias. Estava sem o seu fala-que-a-câmara-paga. Disse que estava impedido de o utilizar nos próximos quatro dias. Era a sanção por ter fornecido os boletins de inscrição sem ordem prévia.

Atónito, o Joãozinho foi de novo à White House, na esperança de conseguir perceber o porquê de tanta preocupação, pois pensava estar a contribuir para a democracia interna dos limpa-chaminés, que passaria, com todos os seus arregimentados, a possuir uma fecunda panóplia de participações.

Recebido pela nata do senado, excepção feita ao peludo, que então se debatia com aturados problemas arquitectónicos e ao imperador Adriano, preocupado na renovação do seu projecto ADRIANIZAR, logo foi explicado ao Joãozinho que a sua irreflectida atitude punha em risco a subsistência da principal política daquele executivo: a manutenção da tacharia.
Explicou então o senador magnânimo em termos práticos: «se formos poucos a votar controlamos toda a gente e elegemos quem quisermos. Se formos muitos, perdemos o controlo e arriscamo-nos a que o lobby adriático se instale e nos corra todos à vassourada, como sucedeu em tempos no senado a que hoje presido».

«Joãozinho», disseram todos, «só te resta uma saída, devolve os impressos todos e diz que por agora não se aceitam mais inscrições. Mais tarde voltaremos a contactá-los».

Ciente da sua estupidez, que quase punha em risco o seu almejado emprego, não fora a incapacidade do senador master nunca ter tido coragem para despedir quem quer que fosse, devolveu à procedência todos os boletins e, com isso, contribuiu para a manutenção da ditadura interna dos limpa-chaminés, que por lá continuarão até aparecer alguém que se lembre de criar uma força independente que congregue todos os que viram os seus boletins fazer marcha à ré.
 
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S. Pedro do Sul, Viseu

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