O ACIDENTE DA EXCELSA ESPOSA DO ALFACINHA
Um daqueles típicos alfacinhas, do estilo «em Lisboa é tudo mais baril, ‘tás a ver», tendo ouvido falar na Sintra da Beira e nas enaltecidas qualidades da sua água e gente , meteu-se à estrada no seu Daewoo recém comprado através de crédito pessoal com 569 prestações.
Com uns trocos no bolso, depois de ter vendido a pastelaria que tinha na Damaia, que lhe valeu umas massas depois de ter enganado um Baltazar de Cabo Verde, resolveu, dizia ele, «vir investir na província».
Após profícua conversação mantida com o mais elevado reduto intelectual sampedrense, representado pelos seus mais ilustres membros, Professores Doutores J. Borges e M. Silva, ambos com doutoramento em potilicosofia – novo ramo do saber que abrange aquilo que quiserem – foi aconselhado a investir no comércio de bebidas alcoólicas.
Com argumentos de peso, pelo menos assim pensou, tamanha era a convicção com que, entre eles, esgrimiam os mais complexos argumentos, ora citando uma quadra de Charles Baudelaire, ora parafraseando Friederich Engels, enquadrando estes autores na sua visão apologética das bebidas licorosas, conduziram o alfacinha até à Câmara para que este apresentasse um pedido de informação prévia quanto à localização pretendida do estabelecimento: Vilar.
Depois da re-homenagem a António Correia d’Oliveira, vociferaram os conceituados Professores, impunha-se agora enaltecer as virtudes da segunda personagem mais nobre do concelho: a puta de Vilar.
Num bailado sereno de palavras melancólicas, interrompido por um tom mais grave quando pretendia captar a atenção de todos quanto tentavam escapar-lhe, o Professor Silva dizia ser merecida a homenagem a tal mártir, que chegou a comparar a Joana D’Arc.
Percorrer os bosques de Vilar até ao Bar de Vilar, sentir o pulsar da vida da puta que por ali trabalhou arduamente, pelo menos assim o demonstravam vários sinais físicos da sua existência, que mais almejar, questionava-se agora o Professor J. Borges, enquanto evocava a memória de Natália Correia, para, logo de seguida, estabelecer um paralelismo com a determinação daquela.
Rendido a tanta eloquência e sapiência, lá se dirigiu o alfacinha ao departamento responsável pelo pedido em causa. Ali chegado, disseram-lhe que teria de falar com a responsável do principal, mas que esta se tinha ausentado por breves instantes, rapidinho, disseram os 39 simpáticos funcionários que por lá se acotovelavam.
Em alternativa, sugeriram, tente falar com o vereador responsável, pode ser que lhe resolva o problema.
Depois de autorizado pelos 79 assessores, o lisboeta da Damaia lá subiu ao primeiro andar, sempre acompanhado pelos sempre falantes Professores, que, entretanto, se envolviam entre si numa acesa discussão sobre as virtudes do sistema neo-liberal.
Aí chegado, informaram-no que o vereador estava ausente, mas que, rapidinho, voltaria.
O tempo foi passando – o necessário para os Professores Doutores J. Borges e M. Silva criarem as bases filosóficas de um sistema alternativo ao neo-liberal – e o alfacinha recebe uma chamada no seu telemóvel comprado na Feira do Relógio a um Tatamovich romeno. A sua excelsa esposa, que seguia na estrada que serpenteia o vale de ligação entre Vasconha e Fataunços, havia chocado de frente contra um jipe da Câmara de Sintra da Beira, em que seguiam, ao que se apurou, um vereador e uma responsável por um departamento camarário.
Seguiam, disseram depois, para uma reunião rapidinha que se iria realizar numa cidade ali próxima, parece que para debater com um arquitecto local um plano de pormenor na zona de Vilar.
Frustado com o sucedido e farto de ouvir a terceira teoria dos Ilustres Professores sobre o sistema neo-liberal, o alfacinha zarpou para a capital e não mais voltou à Sintra da Beira, farto de tanta cambalhota pública e notória.
Tristes ficaram os Professores, por terem perdido uma oportunidade de ficarem com um amigo no ramo das bebidas licorosas. Parece que nesse dia e num acto absolutamente inusitado, foram os dois para o Roquivários e, sobre as páginas do Público e Do Expresso, pousaram os copos onde afogaram as suas mágoas.