LINDA DE SUZA, LOUIS XIV – LE ROI SOLEIL E S. PEDRO DO SUL
Depois de me haver debruçado sobre a plebe dos andantes – acreditam que no fim de escrever o post senti um desejo de dar um valente mergulho no Mediterrâneo, seguido de um banho turco no spa do hotel? – vou hoje evocar a memória de Louis XIV, o rei sol.
Desenganem-se, porém, os que pensam que vou dar uma de intelectualóide de esquerda, a debitar palavras ininteligíveis e a somar factos e datas históricas de Sua Majestade.. Para isso, deverão consultar o blog do homemsemnome, vestirem-me à maltrapilho e beberem aguardente com mel, acompanhada com broa de chouriço.
Há muito que trabalho numa tese que pretende demonstrar a importância da ida de Linda de Suza para França e, sobretudo, da relação da sua ida com as vantagens que daí decorreram para os habitantes de S. Pedro do Sul.
Nos já longínquos anos 60 e 70, muitos emigrantes portugueses deram corda aos sapatos e, com malas de cartão, latão ou meros sacos de plástico, deram o salto para França.
Também S. Pedro do Sul viu partir muitos dos seus filhos, que por lá trabalharam arduamente nas mais variadas profissões, poupando todos os tostões que conseguiam, enviando-os para Portugal, onde mais tarde haveriam de regressar para construir uma casa com azulejos azuis vidrados com uma rampa de acesso à garagem defronte, onde haveriam de estacionar o recém adquirido Opel Ascona com estofos de pêlo branco, pois que a garagem haveria de se destinar à cozinha, sala, WC e quarto, reservando-se o 1º andar para um museu destinado à Torre Eiffel e a fotografias do Karol Voytila em tamanho família.
Felizmente, alguns deste emigrantes deram um rumo diferente à sua vida e, ao invés de torrarem o seu dinheiro nesse tipo de disparates, investiram-no em prósperos negócios, que implementaram nas suas terras.
É de um emigrante deste tipo que vos vou hoje falar, mais propriamente, num seu filho, afilhado de facto da Linda de Suza.
No dia 22 de Novembro de 1964, saindo do seu pequeno apartamento em Tournan – subúrbios de Pair – por volta das 5.48 horas da manhã, apanhou o RER tomando a direcção da estação de St. Lazare, onde o esperavam duas trinchas e sete baldes de tinta, que haveria de aplicar até às 20 horas desse dia na fachada do BNP Paribas aí existente.
Aproveitando as óptimas condições acústicas da estação, uma jovem cantava a plenos pulmões a seguinte música da sua autoria:
Lá em cima esta o ti-ro-li-ro-li-ro
Cá em baixo esta o ti-ro-li-ro-lo
Lá em cima esta o ti-ro-li-ro-li-ro
Cá em baixo esta o ti-ro-li-ro-lo
Lá em cima esta o ti-ro-li-ro-li-ro
Cá em baixo esta o ti-ro-li-ro-lo
Lá em cima esta o ti-ro-li-ro-li-ro
Já cantava a minha avo...
Lorsque j'étais petite, petite, petite
En allant à l'école
Je chantais ce refrain
Et déjà ma grand'mère, grand'mère, grand'mère
Le fredonnait naguère
Sur le chemin
Ce jour-là quand j'allais au tableau
Je n'attrapais jamais de zéro
Maravilhado com as qualidades vocais e, sobretudo pelo refrão ser em português este nosso emigrante logo se abeirou da jovem e, em troca das lembranças de Portugal assim avivadas – e se ela tinha uma bela voz, com um excelente registo de graves – , depositou na sua mala de cartão uma nota de 10 francos, o que, na época, era uma bela maquia.
Desfeita em agradecimentos ao seu benfeitor matinal, a jovem dizia: «Linda de Suza veut remercier votre générosité, obrigada, obrigada, obrigada!»
Como que sentindo um clique ao ouvir a palavra obrigada, o nosso emigrante convidou-a para comerem uma «duchaise avec un expresso».
Após o blá-blá-blá habitual – a vida difícil dos dois, a saída de Portugal, a importância do cartão na confecção de malas – Linda de Suza dizia-se agradecida ao povo francês e ao bem que lhe havia feito, eram tantas as moedas depositadas na sua mala que logo o cartão haveria de ceder e dar lugar a uma da Louis Vitton. Era tanto o seu reconhecimento que, afirmava com convicção, haveria de chamar Louis ao seu primeiro filho.
No fim do dia, segurado a uma das pegas do RER no regresso a Tournan, o nosso emigrante reflectiu sobre tão sábias palavras e, entrado em casa, onde o esperava uma apetitosa sopa de nabo, fez seu o desejo da Linda de Suza e comunicou-o à sua mulher.
Logo nessa noite concretizaram esse desejo, concebendo um filho macho, a quem deram o nome de Louis – em Portugal haveriam de mudar a grafia para Luis.
Para que Louis se apercebesse da importância do nome dado pela sua madrinha Linda, fizeram uma excursão aVersailles, devidamente munidos de um cesto de vime com uma bôla de carne, onde lhe foi explicado quem havia sido o Rei Sol.
Sem se aperceber, na altura, do significado de uma frase dita pelo seu pai, o jovem Louis gravou-a nas profundezas do seu cérebro: «L’Etat c’est moi».
Regressados a Portugal, estabeleceram-se como pasteleiros, dando ao petit Louis uma forte educação religiosa. Como em tudo o que viria a fazer na vida, empenhou-se na questão cristã e, passado pouco tempo, era já um destacado menino de coro, emparelhando em vários duetos com a Encarnação de Deus em SPS, sempre agarrado à sua guitarra.
Mais tarde, devidamente estabelecido à beira do Vouga e evocando o sentido grandioso do seu nome, adquiriu profusos conhecimentos como fiscal de obras, chegando mesmo a escrever um tratado sobre o empolamento das terraplanagens.
Entretanto, o negócio dos pastéis da família ia crescendo, mercê da grande simpatia de seu pai, também ele Luis, não em homenagem ao Rei Sol, mas antes a um tio-avô que tinha sido moleiro em Alpiarça.
Eram filas e filas que se criavam na entrada do estabelecimento, não pela qualidade dos bolos, apesar desta ser mediana. Muitas das pessoas nem sequer compravam nada. Entravam e saíam do estabelecimento apenas para o verem com um rasgado sorriso estampado na cara, perguntando sempre pela família, o cão e o gato.
O sucesso era tal que o Louis foi chamado ao negócio de família.
Num rebate de inteligência e apercebendo-se que a Agência Lusa não tinha uma delegação em SPS, não quis apenas vender bolos e depressa transfigurou a pequena pastelaria numa agência noticiosa.
Não havia nada que se não passasse na vila e arredores de que não tivesse conhecimento, muitas das vezes antes mesmo dos factos terem acontecido. Era a vaca do Joaquim das Uchas que estava prenhe, era a mulher do carteiro que tinha uma unha encravada, era o acidente sofrido pelo presidente em Manhouce, quando regressava do Porto. Não havia nada que lhe escapasse. Um verdadeiro olho vivo.
Em simultâneo e para refrescar os ânimos dos que pensavam que por ali se quedaria, comprou uma loja de frescos, onde fazia gelar todos quantos lá entravam, pelo menos àqueles a quem eram reveladas as últimas e escaldantes notícias.
Tudo fazendo para que a frase que ecoava na sua cabeça desde criança se tornasse realidade, ainda que devidamente adaptada ao meio sampedrense – S. Pedro do Sul sou eu – atirou-se ainda à gestão de condomínios com unhas e dentes, depressa arrasando com a concorrência.
Um talento desta índole não poderia ser desaproveitado em questões desta natureza.
Entretanto, uns metros acima, o senado laranja, reunido secretamente, tomava a deliberação de criar uma polícia municipal com o objectivo de se inteirar das movimentações tendentes a derrubar o prestimoso trabalho camarário.
Para empreender semelhante tarefa, exigente e específica, só dois nomes foram avançados: o Henriquinho ou o Louis.
Como o Henriquinho já estava ocupado, endereçara o convite ao Louis, que prontamente aceitou, apenas, note-se, pelo empenho em servir os desígnios sampedrenses.
Contratado sob a aparência de fiscal, deixou todas as suas actividades e, de cabeça, começou a fazer relatórios de tudo e todos, comunicando-os directamente á chefia e só a esta reportando.
Para que o disfarce e a tarefa fossem perfeito, ordenaram-lhe passeasse pela vila como se nada tivesse que fiscalizar. Pobres incautos, era nesses momentos que mais trabalhava, sempre dizendo para consigo «SPS c’est moi, SPS c’est moi!».
E tudo graças à Linda de Suza. Não fosse o episódio ocorrido na gare de St. Lazare e nunca o Luis teria chamado Louis ao seu filho e, sabe Deus, não fosse este nome e não teria tido tão grande dignidade e empenho no exercício de tão nobres funções: fiscal da polícia municipal secreta.
Desta vez tenho que dar os sinceros parabéns ao senador Maximus por tão importante contratação. Continue assim, senador, com Louis na rua sentimo-nos todos mais seguros e vigiados.