O CAGALHÃO DO CANDAL E A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSENSei que me vou repetir.
Tento tudo por tudo para não o fazer, mas é impossível não o fazer.
Cada vez que ponho o sítio onde me acabam as costas na cadeira e começo a teclar para escrever sobre algo que se passa em S. Pedro é inevitável. Sinto-me sempre tentado a começar com a palavra «detesto».
É horrível, eu nem sou de dizer mal, a sério. Gosto de ver o lado positivo,
mesmo quando ele está encoberto por névoas derrotistas, colocadas pelos muitos maledicentes que habitam nesta vila. Passei a ser assim desde que me disseram que os derrotistas ganhavam rugas mais cedo.
Findo o desabafo, cá vai, detesto pseudo-intelectuais. Não sei qual a definição dada pelo meu dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que há muito deixei de consultar. Afinal, valerá a pena o meu esforço hercúleo quando sou lido por Fátimas Instâncias e Pedros Afins? Não, pois não?
Para mim um pseudo-intelectual é um frustrado. Alguém que, não tendo capacidades para ser intelectual, para se dedicar ao pensamento, tenta sê-lo. Alguém que dá ares de ser uma coisa que não é, não por falta de vontade, mas por manifesta incapacidade.
Esta minha aversão ganha muito mais sentido quando vejo atribuídos aos
pseudo-intelectuais poderes relacionados com o intelecto ou, dito de um modo mais abrangente, com a cultura. Então quando a visão de cultura se reduz à leitura está tudo estragado.
Aqueles clichés gastos do género: «a juventude não lê, só vê televisão, aquelas novelas brasileiras, só ouvem Quim Barreiros e o Apita o Comboio».
Meus amigos, vamos lá a ver se a gente se entende, mas com sinceridade. Só duas ideias.
Primeira, quero que me permitam a defesa de uma ideia politicamente incorrecta: S. Pedro do Sul não deveria ter um vereador com funções relacionadas com a cultura. Um concelho onde ainda temos de cagar para o quinteiro porque não tem saneamento não se pode dar a esses luxos. Calma Dr. Gralheiro, eu vou já explicar o que quero dizer.
Imaginem que moro no Candal, rodeado daquela beleza natural inóspita.
São 22.00 horas. Janto uma feijoada com couve lombarda e quero arrear o calhau.
Desço as calças, dou uma coçadela no do lado esquerdo, forço os abdominais e vejo a minha poia a escorrer pelas bordas da sanita, para, logo após, esvair-se pelo cano que liga à fossa que tenho ao lado da casa, por sua vez ligada a um cano rateiro que desagua ao lado das rosas da minha tia-avó.
Vejo ainda a preta terra ficar manchada de tons de um castanho nauseabundo que logo descoloram os tufos de erva verde.
De seguida, como se nada tivesse visto, desço à pretensa civilização, que alcanço após 30 minutos de curvas sinuosas. Enjoado, vou ao Tropical e, ao mesmo temo que sou obrigado a ouvir a última querela do Silva com o Borges sobre a economia dos afectos de José Gil, emborco uma imperial com umas moelas avermelhadas. Dois arrotos depois, atravesso a estrada e vou até à biblioteca municipal.
São agora 23.00 horas. À entrada, uma imagem impressa num papel de qualidade fotográfica com 3 metros de altura de uma personagem de aspecto bíblico. As longas barbas, o ar sorridente e os braços abertos fazem-nos sentir uma atitude desesperada, porventura por não estar ninguém no seu interior.
Chego ao balcão e peço o «Mar» da Sophia de Mello Breyner Andersen. Abro ao acaso e começo a ler o «Fundo do Mar»:
«No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.»
Sem mais nem menos, a minha mente começa a derivar. Dou comigo a resumir em tópicos o que me sucedeu nos últimos 60 minutos: feijoada, poia, sanita, terra, mau cheiro, Silva-Borges, moelas...
HELLOOOOOOOOOOOOOOO, berro. A pobre bibliotecária acorda sobressaltada. Peço desculpa pela clarividência demonstrada de forma súbita pela minha mente ter ecoado pela sala vazia.
Como poderia conspurcar a memória de tão nobre poetisa quando, minutos antes estive a cagar para as flores da minha tia-avó, a ouvir o Silva e a comer moelas no Tropical. Não dá.
Segunda, elegemos os gajos, temos de levar com eles, mas não me fecundem o espírito.
Os ilustre munícipes que votaram no Professor Castro não o fizeram de certeza na expectativa de o ver abrir a biblioteca até às 24.00 horas.
Ao colocarem o voto na urna imaginaram as longas barbas entrelaçadas nas cordas da viola. De perna traçada, sentado ao cimo das escadas do convento, acompanhado pelo Dr. Gralheiro com a sua gaita de beiços, a cantar a Grândola Vilamorena. O Henriquinho a fazer a precursão com garrafas de Sumol vazias.
Em simultâneo e ao som da música harmoniosa que ecoa pelo Largo de S. Sebastião, um saco de serapilheira e um rabo-cu de fora a bambolear. S. Pedro é lindo.
Isto sim, meus amigos, é cultura à Sampedrense. Viva, S. Pedro, viva o Professor Castro.